A minha mesa de café, o meu banco de jardim, o meu muro de lamentações, a minha varanda para o mundo

terça-feira, 10 de maio de 2011

Perguntas à Língua Portuguesa de Mia Couto

Venho brincar aqui no Português, a língua. Não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta.Estamos, sim, amando o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os outros tempos deste tempo. Precisamos, sim, de senso incomum. Pois, das leis da língua, alguém sabe as certezas delas? Ponho as minhas irreticências. Veja-se, num sumário exemplo, perguntas que se podem colocar à língua:

* Se pode dizer de um careca que tenha couro cabeludo?

* No caso de alguém dormir com homem de raça branca é então que se aplica a expressão: passar a noite em branco?

* A diferença entre um às no volante ou um asno volante é apenas de ordem fonética?

* O mato desconhecido é que é o anonimato?

* O pequeno viaduto é um abreviaduto?

* Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente?

* Quem vive numa encruzilhada é um encruzilheu?

* Se diz do brado de bicho que não dispõe de vértebras: o invertebrado?

* Tristeza do boi vem dele não se lembrar que bicho foi na última reencarnação. Pois se ele, em anterior vida, beneficiou de chifre o que está ocorrendo não é uma reencornação?

* O elefante que nunca viu mar, sempre vivendo no rio: devia ter marfim ou riofim?

* Onde se esgotou a água se deve dizer: “aquabou”?

* Não tendo sucedido em Maio mas em Março o que ele teve foi um desmaio ou um desmarço?

* Quando a paisagem é de admirar constrói-se um admiradouro?

* Mulher desdentada pode usar fio dental?

* A cascavel a quem saiu a casca fica só uma vel?

* As reservas de dinheiro são sempre finas. Será daí que vem o nome: “finanças”?

* Um tufão pequeno: um tufinho?

* O cavalo duplamente linchado é aquele que relincha?

* Em águas doces alguém se pode salpicar?

* Adulto pratica adultério. E um menor: será que pratica minoritério?

* Um viciado no jogo de bilhar pode contrair bilharziose?

* Um gordo, tipo barril, é um barrilgudo?

* Borboleta que insiste em ser ninfa: é ela a tal ninfomaníaca?

Brincadeiras, brincriações. E é coisa que não se termina. Lembro a camponesa da Zambézia. Eu falo português corta-mato, dizia. Sim, isso que ela fazia é, afinal, trabalho de todos nós. Colocamos essoutro português – o nosso português – na travessia dos matos, fizemos que ele se descalçasse pelos atalhos da savana.

Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas – o racionalismo trabalha que nem lixívia. Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos. Devolver a estrela ao planeta dormente.
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxMia Couto – 11/04/1997

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