A minha mesa de café, o meu banco de jardim, o meu muro de lamentações, a minha varanda para o mundo

terça-feira, 3 de maio de 2011

Como se te escrevesse uma carta

Decidi, escrever-te uma carta. Melhor, fazer de conta que te escrevo uma carta. Para te falar dos meus desatinos, dos meus olhares vazios, das vezes em que a tua imagem me avassala ,vem abruptamente , e eu pura e simplesmente deixo de seguir o que estava a fazer e fico para ali, parada, silente, a lembrar-me de ti.
Não sei se já reparaste, se calhar não, mas florescem amores-perfeitos, nos canteiros dos jardins públicos da cidade. Não que isso tenha importância, claro que não.
Desde criança que eu adoro amores-perfeitos. Invade-me por vezes uma nostalgia imensa desses tempos, perdidos na bruma. Uma infância tão diferente das infâncias das nossas crianças de hoje!
Eu era uma menina pobre. Morava numa casa grande; quando somos pequenos tudo é , na nossa cabeças, na nossa memória, desmesuradamente grande. Depois quando crescemos, choca-nos a pequenez das coisas, quando as revemos.
Mas, a casa era grande, aquela casa era mesmo grande e as tábuas do soalho eram tão grandes que o meu corpito estreito e pequeno cabia inteiro em cada uma delas…Eram tábuas grossas e envelhecidas. Havia uma varanda que dava para uma eira enorme. E do lado direito da eira a casa da Angélica.
A casa era arrendada. E a senhoria, que vivia na casa imediatamente ao lado, era uma senhora muito mais velha que o marido, de cabelo preso num pequenino novelo de cor da prata , sem filhos e dedicava-me a mim, nos meus 7 ou 8 anos, um carinho especial. Eu via-a, um pouco, como a avó ausente, que tinha ficado lá longe, na terra, por força da necessidade de meus pais ganharem o pão para criar os 4 filhos.
Por detrás das casas, havia um terreno, grande, cultivado em cada centímetro quadrado, a que eu acedi, sempre, acompanhada da velha senhora. E ao fundo do lado direito- ainda estou a vê-lo- havia um grande canteiro de amores-perfeitos. Eu olhava-os de olhos arregalados e atentos, presa de tanto colorido. Eram lindos nas suas formas e cores aveludadas. Que delicia! Para mim é como se fossem eternos. Possivelmente foi apenas durante uma estação que visitei o canteiro mas por mais que uma vez, ou então, a visita repetiu-se no ano seguinte e na minha memória o lapso de tempo não existe.
Lembro-me apenas com saudade , sempre, dos amores-perfeitos dessa minha infância, esses , os da minha vizinha e senhoria. Sinto-lhes ainda o toque e o perfume, quando olho nostálgica para os amores-perfeitos de que te falei.
Por que te falo de amores-perfeitos? Por nada , claro, a menos que seja uma simples associação livre.
A pena que tenho, de não te chegar a conhecer inteiramente. Se calhar tu também tens destas memórias, de nadas, de pequenas coisas, que preenchem o nosso universo particular e fazem de nós, afinal, as pessoas que somos.
Sim, porque mesmo que fosse possível, num esforço de abstracção pura, idealizar outro alguém exactamente igual a nós, seriam sempre as nossas memórias, as nossas vivências, a fazer de cada um de nós uma pessoa diferente.
E também, afinal, a pena que tenho que não me tenhas conhecido. Que saibas como penso , como sinto, o que me deixa triste ou alegre.
Sim , pouco nos conhecemos. Talvez por isso, este amor, foi assim, estranhamente intenso e inquietantemente profundo .
Não, não por favor!!Eu sei que tu tens imensa coisa para me dizer; hás-de querer de certeza lembrar-me que, também tu, me amaste embora não desta forma, quase doentia ,como te amei; hás-de querer, quiçá, falar-me das vezes que te lembras do meu perfume, da minha voz, das minhas palavras, dos meus beijos.
Deixa. A sério, não digas nada.
Guarda para ti as vezes que os meus olhos te falavam de coisas inconfessáveis, que eu farei o mesmo.

Afinal, sabes, sim tu sabes, quantas pessoas poderão dizer o mesmo que nós?
Quem poderá falar de uma paixão deste tamanho??
Guarda, guarda na sombra acetinada e protegida de uma gaveta especial, no teu coração, a memória deste meu amor.
E, aproveita, corta uns amores-perfeitos e mete-os lá nessa gaveta. Mexe-lhe, apenas quando sentires que a morte se aproxima.
Hás-de ver que, entre umas pétalas secas, o meu amor , continua vivo.

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