A minha mesa de café, o meu banco de jardim, o meu muro de lamentações, a minha varanda para o mundo

sexta-feira, 18 de março de 2011

Um texto magnifico de Natalia Correia

"A partir de um certo dia em que se foi ao campo com os amigos,começa-se a notar que qualquer coisa nos interdiz o contacto dos objectos. Um sinal iniludível é o da laranja que descascámos ,comemos e todavia permanece sobre a mesa.
"Começa-se a atribuir à família a causa desse mal-estar. Dentro da técnica habitual, a escamoteação da laranja e, sem duvida, outro truque da família para nos amarrar à sua dependência.
"quer-se tirar a prova. Vai-se a um pomar e descobre-se com crescente suspeita que nao é o tempo das laranjas. mas ocorre uma ideia salvadora. As laranjas vieram da Baía. Como laranjas antípodas têm faculdades anormais. importa ,pois, seguir esse novo fio. São estes os estímulos que nos fazem viajar.Vai-se , pois, à agência de viagens comprar um bilhete para a Baía.Abre-se a carteira e põe-se o dinheiro no balcão. Estranhamente, o empregado fica na mesma atitude: olha-nos na expectativa de receber o dinheiro para nos passar o bilhete para a mão. A situação desenvolve-se num insustentável jogo do sisudo. A certa altura gritamos: Então,esse bilhete? O empregado responde: Estou à espera do dinheiro. Protestamos indignados:Já lho dei. Ele diz, polidamente,que estamos a brincar com ele, o que virtualmente nos define como vigarista: Soou a hora da nossa ignomínia social. Atiramos-lhe à cara : Vigarista é o senhor. Mas o empregado não se exalta: Limita-se a comentar profissionalmente:O truque é conhecido. Tem muita sorte em não o mandar prender.
"Procura-se então a ultima pessoa que nos merece confiança:a amada. Contamos-lhe o que aconteceu.Ela não atina com a causa. A única coisa que esclarece é que se soubesse o motivo, não nos amava.E, mais uma vez ,lançando-se em nossos braços, renova a proposta que nos faz sempre que se funde uma lâmpada ou chegamos atrasados ao cinema: o suicídio duplo.
"Sai-se então, desvairado, para a rua. Aponta-se a matricula do primeiro automóvel que passa. Obtém-se um numero telefónico. Liga-se. Descobre-se, finalmente, a pessoa que nos cortou o braço direito."


Natália Correia in "A Madona"

Sem comentários:

Enviar um comentário